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Um Brasil de
"jovens" aposentados

Rolf Kuntz

Adicionado ao site em 10.06.2003


O próximo grande teste para os democratas brasileiros, ou para aqueles que ostentam esse rótulo, será a reforma da Previdência. A discussão apenas começou e tem girado em torno de argumentos jurídicos e econômico-financeiros. A Previdência brasileira, especialmente a do setor público, é insustentável e acabará levando o País a um desastre, afirmam economistas e financistas. As inovações propostas ferem direitos adquiridos, dizem os que se opõe à mudança, apoiados por alguns juristas ilustres. Não são direitos, dizem defensores da reforma: são privilégios política e moralmente condenáveis e é preciso extingui-los. É possível argumentar a favor de cada uma dessas afirmações e é isso que torna o quadro especialmente complexo. Há evidentes problemas financeiros e atuariais, que nenhum governo deverá desconhecer. Há também uma escandalosa diferença entre as condições de aposentadoria dos setores público e privado. Mas é preciso não esquecer que mesmos "privilégios" - o termo é às vezes muito impreciso - podem ter uma sólida base legal e corresponder a direitos adquiridos. Será este o caso? Se se provar que não, o problema estará resolvido. Mas a discussão não avançou o suficiente.

Numa democracia, não se pode jogar pela janela, simplesmente, a questão dos direitos, por mais incômoda que possa parecer. Boas intenções e um profundo senso de justiça não bastam para justificar a violação de direitos baseados na lei positiva. Justiça, legitimidade e ética são termos bonitos e sonoros, mas são usados, com aterradora freqüência, para acobertar golpismos de todas as cores e canalhices de todos os tipos. Quem se preocupa com a democracia e com o respeito à lei deve ser cuidadoso no uso desses conceitos.

Uma boa e honesta discussão sobre a reforma da Previdência não pode atropelar, alegremente, a questão dos direitos. Estarão certos, afinal, os que se dizem titulares de direitos adquiridos? Se estiverem, como realizar a reforma sem pisotear o artigo 5.º da Constituição, no seu inciso XXXVI?

O Brasil tem juristas suficientes para discutir esses temas com muita competência. O debate envolverá - de fato, já envolve - noções como poder constituinte original, poder constituinte derivado, diferença entre direito e expectativa de direito, rigidez versus evolução constitucional e assim por diante. Talvez não se encontre uma solução técnica satisfatória para todos e, nesse caso, a resposta será inevitavelmente política. Terá de ser política e negociada, de toda forma, se for preciso compatibilizar direitos e possibilidades financeiras. Em qualquer caso, nenhuma solução que menospreze a noção de direito adquirido, ou que simplesmente contorne esse tema, sem lhe dar importância, será satisfatória para quem valoriza o Estado de Direito.

Alguns julgarão suficiente uma referência ao interesse geral, ou da maioria, ou do Estado, para justificar o desprezo àquela noção. Pode ser instrutivo lembrar que nem Francisco Campos, o jurista do Estado Novo, foi tão longe.

"Quando circunstâncias especiais exigem a revisão das relações jurídicas acabadas", afirmou Campos, "o legislador não pode ficar privado da faculdade de promulgar leis retroativas, pois o Estado, como guarda supremo do interesse coletivo, não deve atar as próprias mãos pelo receio de, em certas contingências, ter de ferir ou contrariar direitos individuais". O próprio Campos, no entanto, afirma que isso é justificável só em circunstâncias muito raras e advertiu: "Se a retroatividade fosse proclamada como regra, o direito deixaria de ser um fator de organização social, para tornar-se elemento de incerteza, confusão e anarquia." O mundo jurídico, acrescentou, é "essencialmente o mundo da segurança e da ordem" e baseia-se não só no postulado da justiça, mas também "nos postulados da certeza e da duração".

Há espaço, numa democracia liberal, para a mais radical dessas duas teses?

Curiosamente, os mais propensos a desprezar ou a contornar a questão dos direitos, no caso da Previdência, são defensores da consolidação, no Brasil, de uma ordem capitalista moderna e globalizada. Uma economia globalizada só será eficiente se for competitiva, isto é, capaz de criar um ambiente propício ao investimento e à inovação produtiva. A segurança jurídica, no entanto, é considerada um importante fator de atração de investimentos. É uma das variáveis incluídas, habitualmente, na construção dos indicadores de competitividade. Consulte-se, por exemplo, o estudo anual produzido por uma equipe liderada pelo professor Jeffrey Sachs. Segurança jurídica é também um objetivo importante nos programas de reforma - de segunda geração - desenhados pelo Banco Mundial.

É disso, precisamente, que se ocupa o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando reitera a disposição de cumprir contratos e de respeitar o direito de propriedade. Não só os investidores, mas também os emprestadores de dinheiro, querem ter a segurança de que seus direitos serão respeitados.

As autoridades chinesas têm conseguido, aparentemente, transmitir a imagem desejável aos que investem no país.

Isso é outra questão, dirão os mais cínicos: trata-se de oferecer segurança a quem tem capital para aplicar no Brasil ou em qualquer outro lugar. Pode ser. Mas essa resposta não serve para quem acredita que a segurança legal deva ser um patrimônio de todos. Para estes, a reforma da Previdência pode ser um objetivo economicamente valioso e até um imperativo de justiça. Mas a segurança do direito fundado em lei é igualmente preciosa. Falta descobrir como cuidar dos dois objetivos sem perder nenhum deles.



 Rolf Kuntz é jornalista.




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