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Memórias são deixadas
de herança para a família

A professora aposentada Neuza Guerreiro de Carvalho guarda as memórias de seus 75 anos de vida em três baús e em dezenas de livros. Ali estão registros escritos, fotografias e objetos que contam não só a história de sua existência mas também a dos familiares que a antecederam e a sucederam e ainda a da cidade em que sempre viveu, São Paulo.

A lembrança mais remota que conserva? "Uma caixinha que era do meu pai", diz ela, e, do fundo do baú que leva o nome "Memórias e Histórias", saca a caixinha cuidadosamente embalada para que dure por muitos anos.

Dos baús de Neuza saltam certidões de nascimento, mantas de recém-nascidos, a capa que cobria sua camisola na noite de núpcias, na década de 50, e um disco contendo a gravação do seu casamento. Em cada uma delas, há uma papeleta descritiva que contextualiza o objeto em sua época. "Não guardo apenas coisas, registro o contexto. É a herança que vou deixar para os meus netos."

A professora dá oficinas de memória usando textos, músicas e conversas como estratégias de estimulação. Em setembro, ela deve ministrar a oficina "Memória Viva da Lapa", no espaço Tendal da Lapa, em São Paulo.

Ela reconstruiu as ramificações da árvore genealógica de sua estirpe. "Vivi momentos de muita emoção. Na basílica de Iguape (São Paulo), achei o assento do batizado do avô do meu marido, datado de 1872", conta.

Gosto do passado

Década de 50. Numa casa pobre do bairro de Remédios, zona norte de São Paulo, crianças olham a chuva cair lá fora. Estão imundas de tanto brincar e irritadas por terem de ficar dentro de casa. Irene é uma delas.

Do fogão à lenha encravado na cozinha de chão de tijolos, sobe um cheiro de alho frito. O aroma perfuma a tarde e atrai os pequenos mal-humorados. O avô de Irene corta pães em finas fatias e mistura com batatas, azeite e sal. Faz miga, comida espanhola conhecida em Portugal como sopa de pão. A tropa mirim se aquieta. Serenos, comem com as mãos. Orgulhoso do feito, o avô toca violão.

"Era aniversário do meu marido e eu estava servindo uma receita russa quando me lembrei da miga", conta a dona-de-casa Irene Galev Cavallini, 61. Correu e incluiu a passagem no livro "No Vão da Escada", que publicou independentemente após fazer o curso "Resgatando e Escrevendo suas Memórias", do Colégio Santa Maria, em São Paulo.

"Escrevi sobre a minha vida, mas não no estilo começo, meio e fim", conta Cavallini. "Fiz do meu jeito." Jeito esse que ela define como "uma colcha de retalhos" e une as vivências do próprio curso a episódios da infância, informações sobre antepassados e sobre descendentes, lembranças de crônicas, jornais e acontecimentos de épocas diversas. "Vou deixar para os meus descendentes que hoje não têm paciência de me escutar."

"Resgatar a própria história é um modo de se redescobrir e de registrar quem você é", diz Maria Aldina Galfo, professora do curso do Colégio Santa Maria. O programa é destinado a alunas com mais de 50 anos e usa técnicas como o estímulo aos sentidos, a leitura e o debate. A duração não é predeterminada. "Vamos no ritmo delas. A primeira turma levou um ano e quis seguir com um novo curso."

A reconstrução dos episódios da vida serve de pano de fundo ao fortalecimento da auto-estima. "A memória tem o poder de esclarecer o papel de cada um. Lembrando o que passou, você avalia o que fez e o que não fez e percebe o que ainda pode fazer", afirma a professora.

"A memória é uma função cognitiva que depende diretamente dos afetos --paixões, alegrias, tristezas", define Valéria Lasca, psicóloga e mestre em gerontologia pela Unicamp. "É por isso que alterações de afetos como a depressão e o transtorno ansioso interferem no lembrar", completa a especialista.

Lasca e a fonoaudióloga Elisandra Villela Gasparetto são autoras do livro "Exercite sua Mente" (ed. Prestígio, 159 págs., R$ 34), que aborda questões como memória, atenção, percepção, linguagem e criatividade.

Ela explica que a memória é gerada em três etapas. "A mente recebe, registra e depois usa a informação armazenada." Fatores como o humor, o estresse e até mesmo o uso de alguns medicamentos podem comprometer a memória, alerta. "Falha de memória não é um problema da idade. Qualquer um está sujeito, embora os idosos estejam mais suscetíveis."

 

Fonte:TATIANA DINIZ - MARCOS DÁVILA
da Folha de S.Paulo - 08/09/2005


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