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Previdência Social
Proposta de unificação ignora a realidade

Kiyoshi Harada

Adicionado ao site em 10.06.2003


INTRODUÇÃO

A unificação da Previdência Social, com a absorção da previdência pública pela privada, ignora a realidade financeira do País, que está a inviabilizar sua implantação, sem considerar os múltiplos aspectos constitucionais que a impedem, pelo menos, na forma preconizada pelo atual governo e divulgada pela mídia.

A maioria esmagadora dos milhares de Municípios, assim como grande parte dos Estados membros sempre andaram às voltas com problemas financeiros, não logrando recolher aos cofres da Previdência Social as contribuições retidas por ocasião do pagamento de servidores contratados (exercentes de cargos em comissão e outros servidores não titulares de cargos efetivos). Os tribunais do País têm gasto um bom tempo ocupando-se das discussões travadas, decorrentes de inadimplemento das entidades políticas regionais e locais. Até medidas legislativas foram elaboradas para evitar ajuizamento de ação penal contra agentes políticos (Lei nº 9.639/98).

Imagine-se, agora, se esses entes políticos tiverem que arcar, mensalmente, com uma contribuição de 20% sobre o total da folha de remuneração de seus servidores, titulares ou não de cargos efetivos, sem falar em outras contribuições próprias do regime previdenciário geral. Como poderiam, ao mesmo tempo, continuar pagando as aposentadorias e pensões aos atuais beneficiários? Note-se que a maioria dos Estados e Municípios não contam com o regime previdenciário de caráter contributivo.

FALTA DE PROJETO DEFINIDO

Fala-se muito em reforma da Previdência. Só que até agora não existe

um projeto definido. Não há anteprojeto de lei para iniciar as discussões junto às instituições públicas e privadas como sindicatos, universidades, órgãos de classe etc. O que existe de concreto é a eterna lamúria de que a Previdência está quebrada, mas, sem procurar detectar as causas. Temos a impressão que se forem, corretamente, diagnosticadas as causas e elas forem eliminadas, a reforma não mais será necessária.

A fantástica forma imaginada pelos autores da Reforma - unificação das regras, sem unificação do regime previdenciário - concedendo aos Estados e Municípios um prazo de carência de dez anos para recolhimento de suas contribuições, além de configurar uma heresia jurídica, representa o início de um procedimento tendente a implodir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa LRF, diga-se de passagem, jamais esteve no agrado dos políticos no poder. E o grau de agrado ou desagrado sempre esteve na proporção direta do bom, ou do mau desempenho do governo, no cumprimento das metas prioritárias, em função das quais os governantes foram legitimados nas urnas. O certo é que, essa lei sempre foi e continuará sendo aplaudida por aqueles que estão fora do poder, por propiciar uma farta munição para oposição sistemática.

Outrossim, a propalada formação de ´fundo previdenciário´ durante o período de carência, além de não surtir efeito imaginado por seus autores, só serviria para aumentar, indiretamente, a carga tributária dos indefesos contribuintes.~pDa irretroatividade da lei

Qualquer proposta de alteração do regime previdenciário, em um Estado Democrático de Direito, como reza o art. 1º de nossa Constituição Federal, deverá respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Entre a aprovação do novo regime jurídico previdenciário e a sua efetiva implementação, com a fruição dos benefícios pelo regime novo, haverá, necessariamente, que se aguardar o decurso de prazo para a aposentadoria dos atuais servidores públicos efetivos, segundo as regras ora vigentes. Em outras palavras, se o novo regime for aprovado hoje, só daqui a trinta e cinco anos começará o pagamento de proventos e de pensões pelo novo regime.

Na elaboração do projeto de lei, a ser debatido, há de constar, necessariamente, regras claras de respeito aos atos jurídicos perfeitos, direitos adquiridos e coisa julgada. A nova lei, ainda que amparada em Emenda Constitucional, processo legislativo subalterno (art. 60, § 4º, IV da CF) não poderia provocar efeito retroativo em graus máximo, médio ou mínimo, de sorte a desrespeitar o ato jurídico perfeito e o direito adquirido (art. 5º, XXXVI da CF), protegidos em nível de cláusula pétrea. O poder de emendar é limitado, é subalterno ao poder de constituir. Este último, somente uma constituinte originária o detém, ou aquele que lograr vitória em uma Revolução. Se o Executivo, com maioria no Congresso Nacional, pudesse mudar a Constituição, sempre que não concordar com a interpretação dada pela Corte Suprema, no exercício de sua atribuição constitucional, rompido estaria o princípio da independência e harmonia dos Poderes, que se constitui em outra cláusula pétrea.

Se a questão fosse tão simples, como imaginam os atuais idealizadores da inovação, o governo anterior já teria feito a reforma completa, ao invés, daquela que resultou da EC nº 20/2000, que só serviu para provocar uma avalanche de aposentadorias precoces, onerando repentinamente os cofres públicos. O fantasma da supressão inconstitucional da garantia do direito adquirido já começa ganhar corpo; a continuar assim, outra avalanche de aposentadorias prematuras surgirá, transformando a nossa sociedade em um País de inativos.

É preciso que o governo fixe, desde logo, uma posição clara em torno do respeito às garantias constitucionais vigentes. E é preciso sepultar de vez essa curiosa mania de fazer confusão, deliberada ou não, em torno do direito adquirido e expectativa de direito, alegando que os atuais servidores públicos efetivos, apenas, têm uma expectativa de direito à aposentadoria. Isso nos parece elementar, meu caro Watson, como diria Sherlock Holmes. Se o servidor pedir exoneração, for demitido, ou falecer, prematuramente, não irá se aposentar! ou será que vai? Fica a pergunta para reflexão de todos!

Quando se fala em direito adquirido não está, obviamente, pretendendo a imutabilidade do regime jurídico da previdência pública, pela simples razão de que nenhum servidor tem direito adquirido a um determinado regime jurídico, que pode ser modificado unilateralmente pelo Estado. O direito adquirido consiste exatamente no respeito ao direito do servidor adquirido no regime anterior. O que se pretende, isso sim, é que na passagem de um regime para o outro, não sejam retirados os direitos já adquiridos no regime anterior. É diferente da expectativa de direito, que tem o servidor de aposentar-se ao cabo de trinta e cinco anos de contribuição. Direito adquirido significa exatamente a faculdade de o seu titular usufruir, no futuro, dos efeitos de uma lei que não mais está em vigor. Afinal, não haveria necessidade de a Constituição assegurar, em nível de cláusula pétrea, os efeitos da lei em vigor! será que era preciso? Deixo a pergunta para meditação de todos!

De outra parte, o entendimento de que direito adquirido é apenas aquele já exercido, ou que possa ser exercido por seu titular, contraria o disposto no art. 6o, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, que considera adquiridos também os direitos cujo começo do exercício tenha termo prefixo ou condição preestabelecida inalterável. Senão vejamos:

Art. 6º - A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a cosia julgada.

§ 1º -...............

§ 2º - Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrém.

Em tais condições, o direito à aposentadoria do atual servidor, ainda que não consumado, já se encontra configurado e integrado ao seu patrimônio material, na qualidade de direito adquirido, oponível à lei nova, por força do mandamento contido no art. 5o, XXXVI, da Magna Carta, in verbis:

Art. 5º -... .............................................................

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Afinal, não se pode confundir integração ao patrimônio material (dos atuais servidores públicos) com integração material a esse mesmo patrimônio, sob pena de indevida restrição ao aludido preceito constitucional. Se direito adquirido fosse sinônimo de ato jurídico perfeito a Constituição Federal não precisaria distingui-los, como o fez. Não se pode confundir direito adquirido com direito consumado, muito menos com expectativa de direito à aposentadoria.

Nunca é demais repetir, direito adquirido é a faculdade que alguém tem de exercitar, no futuro, o seu direito à luz da lei que não mais está em vigor. Um exemplo servirá para aclarar: Ninguém duvida que a ocorrência do fato gerador faz nascer, ipso fato, a obrigação tributária, consequentemente, o direito da Fazenda ao crédito dela decorrente. Se vier à luz uma nova lei, reduzindo a base de cálculo do tributo ou a sua alíquota, a Fazenda simplesmente a ignorará, porque já havia adquirido o seu direito à luz da norma então vigente. Direito a esse crédito é certo e indiscutível, porém, incerta a realização da receita respectiva, porque em relação a esta a Fazenda tem mera expectativa de direito. Se o contribuinte vier a falecer, sem deixar bens, a Fazenda nada receberá. Por isso, a receita é estimada e não fixada como ocorre com a despesa. Por isso, a Lei de Responsabilidade Fiscal distingue receita estimada da receita disponível. Nesse exemplo, ninguém advogará a aplicação da nova lei, pois, importaria em conferir, claramente, efeito retroativo à lei nova, característica apenas de norma penal benígna.

O Supremo Tribunal Federal já realizou profundo estudo a respeito, afastando, definitivamente, as doutrinas que restringiam o conceito do direito adquirido apenas ao direito consumado, além de emprestarem ao efeito imediato das leis de ordem pública ou de direito público, conotação incompatível com o princípio superior de proteção aos direitos adquiridos. Cuida-se da ADIN nº 493-0-DF - DJU 4.9.92, Relator o em. Ministro Moreira Alves, da qual seguem os seguintes trechos:

´Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um ato ou fato ocorrido no passado.

O disposto no artigo 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente do STF´(p. 70)

´Dá-se a retroatividade máxima (também chamada restitutiva, porque em geral restitui as partes ao statu quo ante) quando a lei nova ataca a coisa julgada e os fatos consumados...A retroatividade é média quando a lei nova atinge os efeitos pendentes de ato jurídico, verificados antes dela...Enfim, a retroatividade é mínima (também chamada temperada ou mitigada) quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos atos anteriores, produzidos após a data em que ela entra em vigo´ (Matos Peixoto, citado, p. 94).

´Aliás, no Brasil, sendo o princípio do respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e à coisa julgada de natureza constitucional, sem qualquer exceção a qualquer espécie da legislação ordinária, não tem sentido a afirmação de muitos - apegados ao direito de países em que o preceito é de origem meramente legal - de que as leis de ordem pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos futuros do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, e isso porque, se alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificações na causa, o que é vedada constitucionalmente´ (p. 96). (LEX JSTF, vol. 168, p. 70 e seguintes).

Como se vê, é falsa a polêmica entre direito adquirido e expectativa de direito, que não está no rol do inciso XXXVI do art. 5º da CF. Em relação a todo e qualquer direito, antes de sua concreção, com a efetiva integração material ao patrimônio de seu titular, adquirido ou não, pouco importa, estar-se-á sempre diante de expectativa de direito. Esta figura jurídica, espertamente invocada pelos defensores da reforma com efeito retroativo, nada tem a ver com o direito fundamental do cidadão, protegido em nível de cláusula pétrea.

Outrossim, a teoria da impossibilidade material de manter o atual regime, invocada por alguns, não pode solapar direitos adquiridos. Dentro da ordem jurídica vigente há de ser encontrado um meio para superar esse obstáculo, até mesmo por meio de responsabilização civil, funcional e criminal dos responsáveis.

DA COMPARAÇÃO DOS DOIS REGIMES PREVIDENCIÁRIOS

Sempre que os diversos articulistas fazem comparações entre um regime jurídico e outro, esquecem-se de computar os rendimentos que o trabalhador da iniciativa privada poderia ter, ao longo dos trinta e cinco anos, com a aplicação da diferença entre o que ele efetivamente recolhe, mensalmente, aos cofres da Previdência e o que o servidor público, titular de cargo efetivo, recolhe à alíquota de 11%, incidindo sobre o total da remuneração, sem a limitação do teto de contribuição a que se sujeita o primeiro. Quem paga sobre uma parcela da remuneração, não pode, evidentemente, pretender a aposentadoria pelo valor total. Apesar de lógico e matemático, esse raciocínio não é levado em conta quando se comparam os dois regimes jurídicos.

Se o trabalhador da iniciativa privada fizesse uma aplicação financeira mensal da diferença de dinheiro, resultante do teto de contribuição social, ao longo de trinta e cinco anos, terá acumulado um capital capaz de render mais que a aposentadoria integral do servidor público. Totalmente injusta e inadmissível, comparações entre dois regimes, sem levar em conta todos os ônus e os benefícios de um e de outro regime jurídico previdenciário.

DAS CAUSAS DE INSOLVÊNCIA DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

Costuma-se dizer que a Previdência privada está quebrada. Só que ninguém diz porque. Ora, das três contribuições sociais, previstas no art. 195, I da CF, cujas receitas deveriam pertencer à autarquia securitária (art. 165, § 5º, III da CF) apenas a contribuição sobre a remuneração do trabalho vem sendo administrado pelo INSS. As demais contribuições, arrecadadas pela Receita Federal, não estão sendo repassadas ao INSS.

O certo é que, se os recursos da Previdência continuarem sendo utilizados em outros setores, ainda que prioritários, pouco importa, não haverá regime algum no planeta, que assegure o equilíbrio econômico-financeiro do órgão securitário, nem passando a tributar os aposentados, pensionistas e seus herdeiros.

Outrossim, é preciso muita vontade política para implementar um plano de ação de combate sistemático aos atos de improbidade, de fraude e de corrupção, que estão minando os recursos da Previdência. Não bastam ações esporádicas com vistas à mídia. É preciso combater dia e noite. Missão árdua e estafante, mas necessária.

No que tange à previdência pública, o que se ouve, diuturnamente, ao longo das décadas, é que não há recursos para pagar um contingente tão grande de inativos. Ao invés de lamúrias, tivessem os governantes anteriores feito a Reforma há vinte anos, bastariam mais quinze anos para implantar por completo o novo regime. O mal é que todo governante quer fazer a Reforma hoje, para colher os frutos no dia seguinte, o que, só seria possível atropelando os direitos adquiridos. Ninguém tem a sensibilidade política de um estadista para plantar, a fim de que gerações futuras e governantes futuros possam colher os frutos. Por isso, não se interessam em levantar as causas do desequilíbrio financeiro e atuarial.

Ora, prescreve o art. 40 da CF:

Aos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime previdenciário de caráter contributivo, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.

Pergunta-se, onde o cumprimento desse preceito constitucional em nível nacional? Milhares de Municípios deixaram de instituir o regime jurídico de caráter contributivo, a começar pelo maior Município da Federação, o Município de São Paulo. Outra coisa, o regime público é só para servidores titulares de cargos efetivos. Os exercentes de cargos em comissão, bem como de outro cargo temporário ou de emprego público sujeitam-se ao regime da previdência geral. (§ 13 do art. 40 da CF). Mas, na prática não é assim, como veremos mais adiante.

Quanto a queixa de que há um enorme contingente de aposentados, o que é verdade, não se pode esquecer, que esse fato deriva diretamente do inchaço do funcionalismo. Os que criticam o inchaço do funcionalismo público, por sua vez, esquecem-se de que são os próprios agentes políticos que o vem patrocinando, conferindo, periodicamente, estabilidade àqueles que ingressaram no serviço público pela porta dos fundos, abalando a estrutura do funcionalismo, consequentemente afetando a eficiência do serviço público. E ao depois, ironicamente, flexibilizam a estabilidade, permitindo a demissão, até mesmo, de servidores concursados (§ 4º do art. 169 da CF na redação dada pela EC nº 19/98). É preciso que se faça uma retrospecção para bem compreender a evolução do nosso funcionalismo.

Até os primeiros anos da década de sessenta tínhamos uma burocracia estável, ágil, eficiente e enxuta, conduzida pelo DASP, Departamento de Administração do Serviço Público, dirigido por um competente Diretor, um profissional do ramo, que conhecia o funcionalismo como a palma de sua mão. Essa burocracia era de despertar invejas na Administração Pública dos Países circunvizinhos. Seus integrantes recebiam apoio material, financeiro e profissional para o cumprimento de suas árduas e relevantes missões. Faziam cursos de reciclagem e se submetiam a avaliações regulares para galgar os altos postos da hierarquia funcional. Enfim, eram estimulados pelo poder público e alimentavam esperanças de ascensão aos cargos e funções cada vez mais complexos e relevantes.

Com o advento do Regime Militar, essa burocracia sofreu o seu primeiro grande golpe, representado pela invasão de ocupantes de ´cargos de confiança´, recrutados por critérios puramente políticos, para preencherem os escalões mais elevados do funcionalismo público. Os concursados tiveram reduzido o seu campo de progressão nas respectivas carreiras, além de serem subordinados, da noite para o dia, a pessoas que levariam meses só para conhecerem a máquina administrativa. Não é preciso ser inteligente para descobrir o efeito danoso que isso causa no serviço público. A cada mudança de governo acarreta uma espécie de paralisia temporária na Administração Pública, contrariando o princípio da continuidade, porque o funcionário público de carreira, alijado dos postos de maior relevância, não consegue fazer a ponte entre a nova e a anterior Administração.

Esse quadro foi-se agravando, até que o nepotismo ganhou corpo no funcionalismo. Lembro-me de um deputado que, na década de setenta, conduziu a sua genitora adoentada, em uma cadeira de rodas, até uma repartição pública para tomar posse em um importante ´cargo de confiança´. Indagado pelos jornalistas, se a referida senhora reunia condições para assessorá-lo, o ilustre representante do povo assim respondeu: quem melhor do que a senhora minha mãe, que me criou e me educou, para merecer a minha confiança? Muito provavelmente, deve ter sido a primeira e a última vez que a aquela servidora pública compareceu ao local de trabalho. Contudo, é possível, também, que ela tenha sido efetivada no cargo.

Com o passar do tempo, os ´funcionários de confiança´ foram sendo efetivados, ganhando a estabilidade. Porém, logo vinha nova leva de fieis escudeiros que, por sua vez, também, seriam efetivados, por ação dos agentes políticos. Quanto mais se efetivava, mais e mais ´funcionários de confiança´ eram recrutados. Enfim, era e continua sendo um dos grandes males da rotatividade do poder político. Por conta desse fenômeno, o termo funcionário público ficou reduzido a mera espécie do gênero servidor público (uma mistura generalizada de profissionais concursados e não concursados, de nomeados e contratados, de servidores de Estado e servidores de agentes políticos). Mistura generalizada, como se sabe, sempre produz efeitos indesejáveis, dentre os quais a perda de identidade. Quando se mistura uma maçã podre então, aí o efeito será bem pior. Refletindo a irreversibilidade desse hábito de mesclar, arraigado nas diversas Administrações Públicas, a Constituição de 1988 substituiu a expressão funcionários públicos pelo termo servidores públicos, conforme se depreende das secções II e III, do capítulo VII, do título III.

Já no decorrer do regime civil, o eficiente DASP foi extinto, dando lugar ao Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE) que, dada a sua estrutura avantajada, perdeu em agilidade e eficiência em relação ao órgão sucedido, sem contar a natural temporariedade de seu dirigente, que ganhou o status de Ministro, fato que, por si só, conspira contra o funcionalismo, por comprometer o desenvolvimento de programas de longa duração. Com constantes mudanças na cúpula desse Ministério não há possibilidade de cultivar uma duradoura política de pessoal, que pudesse resultar, a médio e longo prazos, na formação de uma burocracia de alta qualificação profissional. Esse resultado não pode ser alçado, obviamente, em poucos anos. E mais, quando essa burocracia fica subordinada à autoridade que, por desconhecer as peculiaridades do setor público, tenta impingir os hábitos e as regras de uma grande corporação econômica, em nome da eficiência e rapidez, tudo se complica. É o começo do fim. Seria o mesmo que transplantar para o campo de Direito Público os princípios do Direito Privado, o que, aliás, já está acontecendo com aplausos de alguns juristas de renome. Eficiência e rapidez no serviço público, certamente, hão de serem buscadas, porém, com total respeito e subordinação aos preceitos de ordem pública, e dentro dos rígidos princípios norteadores do regime de Direito Público. Do contrário, vamos acabar confundindo, por exemplo, terceirização no serviço público com a privatização que, para muitos, já seriam a mesma coisa, para o grande espanto dos publicistas em geral. Serviço público não pode ser confundido com atividade empresarial; os seus fins são diversos e até antagônicos, assim como os princípios que os regem.

Concluindo, o inchaço da máquina administrativa e conseqüente situação deficitária da previdência pública, em parte, resulta diretamente do descumprimento do princípio constitucional, que veda o ingresso no funcionalismo público sem concurso de provas ou de provas e títulos, o qual, vem sendo inscrito desde a Carta Política de 1934 até hoje (art. 170, § 2º da CF/34; art. 156, b da CF/37; art. 186 da CF/46; art. 95, § 1º, da CF/67; art. 97, § 1º da Emenda 1/69 e art. 37, II, da CF/88). Por que espezinhar esse princípio constitucional salutar, introduzindo no seio da burocracia ordeira e profissionalizada elementos estranhos, sem comprovação de preparo técnico-profissional para ocupar os cargos mais relevantes do Estado? Por que permitir que essas pessoas, com apenas dez anos de serviço público (sendo somente cinco anos de contribuição sobre o total dos vencimentos) se aposentem com proventos integrais?

Como se vê, uma reforma dessa envergadura não pode ser iniciada a toque de caixa. É preciso levantar e estudar os dados; analisar a realidade; diagnosticar as causas de tantos males da Previdência, com vistas à sua extirpação.

O momento atual exige muito trabalho e dedicação, e não reformas que, além de sem rumo, porque não partiu de diagnósticos corretos, começa minando os pilares onde se assentam a Administração Pública. E aqui é oportuno lembrar as palavras do saudoso jurista Geraldo Ataliba:

"Só iremos fazer o bem para o Brasil no momento em que pararmos com a mania de reformar, de mudar e comerçarmos a trabalhar, a construir o País, para fazer o País funcionar" (Anais do IX Congresso de Direito Tributário, in Revista do Direito Tributário, vol. 62, p. 208).

Se reformar for preciso, deve começar com a Reforma do Estado, e não, com a Reforma da Previdência e Reforma Tributária como estão pretendendo. É necessário que a Reforma do Estado resulte na desburocratização, na agilização de seus órgãos e instituições e na conquista da eficiência. E é imprescindível que se possa avaliar o custo da atividade do Estado modernizado para, ao depois, pensar nas suas fontes de custeio, preconizando a Reforma Tributária adequada à sustentação da máquina estatal enxuta.

DA DISTINÇÃO DE SERVIDORES EXERCENTES DE FUNÇÕES DE ESTADO

Mudar é preciso, para aperfeiçoar o sistema previdenciário público de caráter contributivo, eliminando, por exemplo, o privilégio de aposentar-se com os vencimentos integrais do cargo, ao cabo de dez anos de efetivo exercício, valendo-se da fórmula mágica da contagem recíproca, que deveria valer apenas para o cômputo do tempo para aposentadoria. Imagine-se o exemplo de alguém, que após vinte cinco anos na iniciativa privada, ganhando dois salários mínimos, tivesse sido guindado para importante cargo em comissão, ganhando seis mil reais, e que tivesse sido efetivado no final do primeiro quinquênio. Somente no início do segundo quinquênio é que o aludido servidor passaria a contribuir sobre os seus vencimentos integrais. Porém, ao final do segundo quinquênio, aquele servidor felizardo poderia aposentar-se com os proventos integrais, ou seja, com seis mil reais, contrapondo-se aos dois salários mínimos do tempo da iniciativa privada. Isso não seria justo com os demais servidores de carreira, nem com a sociedade. Situações da espécie são insustentáveis ética e moralmente. Algo precisa ser feito e com urgência.

Agora, querer meter a todos no mesmo balaio, ignorando as peculiaridades de cada categoria de servidores públicos, é pecar pelo radicalismo. Existem servidores, que exercem funções típicas de Estado, correspondentes a cargos públicos específicos, de carreira ou isolados, que os diferenciam dos demais servidores e dos trabalhadores em geral. São os magistrados, os membros do Ministério Público, os Procuradores da Fazenda, os diplomatas, os agentes de fiscalização, os militares etc. Se na ativa, exigem-se qualificações específicas, que conduzem a vencimentos diferenciados, não haveria coerência na pretensão de meter a todos na mesma vala comum, quando aqueles servidores de Estado forem para a inatividade. O que se pode e se deve ter, é um teto na percepção dos proventos, porém, nunca igualar-se aos desiguais. Impõe-se respeito ao regime previdenciário próprio. Isso é elementar e justo; não é elitismo. Afinal, a escolha, por exemplo, de juízes entre pintores, escultores, jardineiros, gravadores e caixeiros, como aconteceu na formação da singular magistratura de Paris, nos idos de 1790, não passa de uma reminiscência histórica, difícil de ser repetida nos dias atuais.

CONCLUSÕES

Não há necessidade de precipitar reformas radicais, mas é preciso ajustar, com urgência, os dois regimes previdenciários, eliminando tanto as causas que impedem o correto ingresso dos recursos financeiros pagos pelos contribuintes, como também, para tapar os ralos por onde escoam os gastos ilegais, desnecessários, ilegítimos ou espúrios;

Se o combate sistemático das causas, que conduziram o sistema previdenciário à beira do abismo, não for suficiente, aí sim, impõe-se a Reforma a partir de projeto, ampla e democraticamente debatido por todos os segmentos da sociedade, porém, precedida da Reforma do Estado.

Eventual Reforma Previdenciária deverá obedecer aos princípios constitucionais esculpidos na Carta Política de 1988.



Mandar e-mail Kiyoshi Harada é advogado em São Paulo (Capital), diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo, ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica da Prefeitura de São Paulo.





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