INTRODUÇÃO
A
unificação da Previdência Social, com a absorção da previdência
pública pela privada, ignora a realidade financeira do País, que
está a inviabilizar sua implantação, sem considerar os múltiplos
aspectos constitucionais que a impedem, pelo menos, na forma
preconizada pelo atual governo e divulgada pela mídia.
A
maioria esmagadora dos milhares de Municípios, assim como grande
parte dos Estados membros sempre andaram às voltas com problemas
financeiros, não logrando recolher aos cofres da Previdência
Social as contribuições retidas por ocasião do pagamento de
servidores contratados (exercentes de cargos em comissão e outros
servidores não titulares de cargos efetivos). Os tribunais do País
têm gasto um bom tempo ocupando-se das discussões travadas,
decorrentes de inadimplemento das entidades políticas regionais e
locais. Até medidas legislativas foram elaboradas para evitar
ajuizamento de ação penal contra agentes políticos (Lei nº
9.639/98).
Imagine-se,
agora, se esses entes políticos tiverem que arcar, mensalmente,
com uma contribuição de 20% sobre o total da folha de remuneração
de seus servidores, titulares ou não de cargos efetivos, sem falar
em outras contribuições próprias do regime previdenciário geral.
Como poderiam, ao mesmo tempo, continuar pagando as aposentadorias
e pensões aos atuais beneficiários? Note-se que a maioria dos
Estados e Municípios não contam com o regime previdenciário de
caráter contributivo.
FALTA DE PROJETO DEFINIDO
Fala-se
muito em reforma da Previdência. Só que até agora não existe
um
projeto definido. Não há anteprojeto de lei para iniciar as
discussões junto às instituições públicas e privadas como
sindicatos, universidades, órgãos de classe etc. O que existe de
concreto é a eterna lamúria de que a Previdência está quebrada,
mas, sem procurar detectar as causas. Temos a impressão que se
forem, corretamente, diagnosticadas as causas e elas forem
eliminadas, a reforma não mais será necessária.
A
fantástica forma imaginada pelos autores da Reforma - unificação
das regras, sem unificação do regime previdenciário - concedendo
aos Estados e Municípios um prazo de carência de dez anos para
recolhimento de suas contribuições, além de configurar uma heresia
jurídica, representa o início de um procedimento tendente a
implodir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa LRF, diga-se de
passagem, jamais esteve no agrado dos políticos no poder. E
o grau de agrado ou desagrado sempre esteve na proporção direta do
bom, ou do mau desempenho do governo, no cumprimento das metas
prioritárias, em função das quais os governantes foram legitimados
nas urnas. O certo é que, essa lei sempre foi e continuará sendo
aplaudida por aqueles que estão fora do poder, por propiciar uma
farta munição para oposição sistemática.
Outrossim,
a propalada formação de ´fundo previdenciário´ durante o período
de carência, além de não surtir efeito imaginado por seus autores,
só serviria para aumentar, indiretamente, a carga tributária dos
indefesos contribuintes.~pDa irretroatividade da lei
Qualquer
proposta de alteração do regime previdenciário, em um Estado
Democrático de Direito, como reza o art. 1º de nossa Constituição
Federal, deverá respeitar o direito adquirido, o ato jurídico
perfeito e a coisa julgada. Entre a aprovação do novo regime
jurídico previdenciário e a sua efetiva implementação, com a
fruição dos benefícios pelo regime novo, haverá, necessariamente,
que se aguardar o decurso de prazo para a aposentadoria dos atuais
servidores públicos efetivos, segundo as regras ora vigentes. Em
outras palavras, se o novo regime for aprovado hoje, só daqui a
trinta e cinco anos começará o pagamento de proventos e de pensões
pelo novo regime.
Na
elaboração do projeto de lei, a ser debatido, há de constar,
necessariamente, regras claras de respeito aos atos jurídicos
perfeitos, direitos adquiridos e coisa julgada. A nova lei,
ainda que amparada em Emenda Constitucional, processo legislativo
subalterno (art. 60, § 4º, IV da CF) não poderia provocar efeito
retroativo em graus máximo, médio ou mínimo, de sorte a
desrespeitar o ato jurídico perfeito e o direito adquirido (art.
5º, XXXVI da CF), protegidos em nível de cláusula pétrea. O poder
de emendar é limitado, é subalterno ao poder de constituir. Este
último, somente uma constituinte originária o detém, ou aquele que
lograr vitória em uma Revolução. Se o Executivo, com maioria no
Congresso Nacional, pudesse mudar a Constituição, sempre que não
concordar com a interpretação dada pela Corte Suprema, no
exercício de sua atribuição constitucional, rompido estaria o
princípio da independência e harmonia dos Poderes, que se
constitui em outra cláusula pétrea.
Se
a questão fosse tão simples, como imaginam os atuais idealizadores
da inovação, o governo anterior já teria feito a reforma completa,
ao invés, daquela que resultou da EC nº 20/2000, que só serviu
para provocar uma avalanche de aposentadorias precoces, onerando
repentinamente os cofres públicos. O fantasma da supressão
inconstitucional da garantia do direito adquirido já começa ganhar
corpo; a continuar assim, outra avalanche de aposentadorias
prematuras surgirá, transformando a nossa sociedade em um País de
inativos.
É
preciso que o governo fixe, desde logo, uma posição
clara em torno do respeito às garantias constitucionais
vigentes. E é preciso sepultar de vez essa curiosa mania de
fazer confusão, deliberada ou não, em torno do direito
adquirido e expectativa de direito, alegando
que os atuais servidores públicos efetivos, apenas, têm uma
expectativa de direito à aposentadoria. Isso nos parece
elementar, meu caro Watson, como diria Sherlock Holmes. Se o
servidor pedir exoneração, for demitido, ou falecer,
prematuramente, não irá se aposentar! ou será que vai? Fica a
pergunta para reflexão de todos!
Quando
se fala em direito adquirido não está, obviamente, pretendendo a
imutabilidade do regime jurídico da previdência pública, pela
simples razão de que nenhum servidor tem direito adquirido a um
determinado regime jurídico, que pode ser modificado
unilateralmente pelo Estado. O direito adquirido consiste
exatamente no respeito ao direito do servidor adquirido
no regime anterior. O que se pretende, isso sim, é que
na passagem de um regime para o outro, não sejam retirados
os direitos já adquiridos no regime anterior. É diferente da
expectativa de direito, que tem o servidor de aposentar-se
ao cabo de trinta e cinco anos de contribuição. Direito adquirido
significa exatamente a faculdade de o seu titular usufruir, no
futuro, dos efeitos de uma lei que não mais está em vigor.
Afinal, não haveria necessidade de a Constituição assegurar,
em nível de cláusula pétrea, os efeitos da lei em vigor! será que
era preciso? Deixo a pergunta para meditação de todos!
De
outra parte, o entendimento de que direito adquirido é apenas
aquele já exercido, ou que possa ser exercido por seu titular,
contraria o disposto no art. 6o, § 2º, da Lei de
Introdução ao Código Civil, que considera adquiridos também os
direitos cujo começo do exercício tenha termo prefixo ou condição
preestabelecida inalterável. Senão vejamos:
Art. 6º - A lei em vigor terá efeito
imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito
adquirido e a cosia julgada.
§ 1º -...............
§ 2º - Consideram-se adquiridos assim os
direitos que o seu titular, ou alguém por ele possa exercer, como
aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo ou condição
preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrém.
Em
tais condições, o direito à aposentadoria do atual servidor, ainda
que não consumado, já se encontra configurado e integrado ao seu
patrimônio material, na qualidade de direito adquirido, oponível à
lei nova, por força do mandamento contido no art. 5o,
XXXVI, da Magna Carta, in verbis:
Art. 5º -...
.............................................................
XXXVI - a lei não prejudicará o direito
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Afinal,
não se pode confundir integração ao patrimônio
material (dos atuais servidores públicos) com
integração material a esse mesmo patrimônio, sob
pena de indevida restrição ao aludido preceito constitucional. Se
direito adquirido fosse sinônimo de ato jurídico
perfeito a Constituição Federal não precisaria distingui-los,
como o fez. Não se pode confundir direito adquirido
com direito consumado, muito menos com
expectativa de direito à aposentadoria.
Nunca
é demais repetir, direito adquirido é a faculdade que alguém tem
de exercitar, no futuro, o seu direito à luz da lei que não mais
está em vigor. Um exemplo servirá para aclarar: Ninguém duvida que
a ocorrência do fato gerador faz nascer, ipso fato, a
obrigação tributária, consequentemente, o direito da Fazenda ao
crédito dela decorrente. Se vier à luz uma nova lei, reduzindo a
base de cálculo do tributo ou a sua alíquota, a Fazenda
simplesmente a ignorará, porque já havia adquirido o seu direito à
luz da norma então vigente. Direito a esse crédito é certo e
indiscutível, porém, incerta a realização da receita respectiva,
porque em relação a esta a Fazenda tem mera expectativa de
direito. Se o contribuinte vier a falecer, sem deixar bens, a
Fazenda nada receberá. Por isso, a receita é estimada e não fixada
como ocorre com a despesa. Por isso, a Lei de Responsabilidade
Fiscal distingue receita estimada da receita disponível. Nesse
exemplo, ninguém advogará a aplicação da nova lei, pois,
importaria em conferir, claramente, efeito retroativo à lei nova,
característica apenas de norma penal benígna.
O
Supremo Tribunal Federal já realizou profundo estudo a respeito,
afastando, definitivamente, as doutrinas que restringiam o
conceito do direito adquirido apenas ao
direito consumado, além de emprestarem ao
efeito imediato das leis de ordem pública ou de
direito público, conotação incompatível com o princípio superior
de proteção aos direitos adquiridos. Cuida-se da ADIN nº 493-0-DF
- DJU 4.9.92, Relator o em. Ministro Moreira Alves, da qual seguem
os seguintes trechos:
´Se a lei alcançar os efeitos futuros de
contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa
(retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é um
ato ou fato ocorrido no passado.
O disposto no artigo 5º, XXXVI, da
Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei
infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito
público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e
lei dispositiva. Precedente do STF´(p. 70)
´Dá-se a retroatividade máxima (também
chamada restitutiva, porque em geral restitui as partes ao statu
quo ante) quando a lei nova ataca a coisa julgada e os fatos
consumados...A retroatividade é média quando a lei nova atinge os
efeitos pendentes de ato jurídico, verificados antes dela...Enfim,
a retroatividade é mínima (também chamada temperada ou mitigada)
quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos atos anteriores,
produzidos após a data em que ela entra em vigo´ (Matos Peixoto,
citado, p. 94).
´Aliás, no Brasil, sendo o princípio do
respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e à coisa
julgada de natureza constitucional, sem qualquer exceção a
qualquer espécie da legislação ordinária, não tem sentido a
afirmação de muitos - apegados ao direito de países em que o
preceito é de origem meramente legal - de que as leis de ordem
pública se aplicam de imediato alcançando os efeitos futuros do
ato jurídico perfeito e da coisa julgada, e isso porque, se
alteram os efeitos, é óbvio que se está introduzindo modificações
na causa, o que é vedada constitucionalmente´ (p. 96). (LEX JSTF,
vol. 168, p. 70 e seguintes).
Como
se vê, é falsa a polêmica entre direito adquirido e
expectativa de direito, que não está no rol do inciso XXXVI
do art. 5º da CF. Em relação a todo e qualquer direito, antes de
sua concreção, com a efetiva integração material ao patrimônio de
seu titular, adquirido ou não, pouco importa, estar-se-á sempre
diante de expectativa de direito. Esta figura jurídica,
espertamente invocada pelos defensores da reforma com efeito
retroativo, nada tem a ver com o direito fundamental do cidadão,
protegido em nível de cláusula pétrea.
Outrossim,
a teoria da impossibilidade material de manter o atual regime,
invocada por alguns, não pode solapar direitos adquiridos. Dentro
da ordem jurídica vigente há de ser encontrado um meio para
superar esse obstáculo, até mesmo por meio de responsabilização
civil, funcional e criminal dos responsáveis.
DA COMPARAÇÃO DOS DOIS REGIMES PREVIDENCIÁRIOS
Sempre
que os diversos articulistas fazem comparações entre um regime
jurídico e outro, esquecem-se de computar os rendimentos que o
trabalhador da iniciativa privada poderia ter, ao longo dos trinta
e cinco anos, com a aplicação da diferença entre o que ele
efetivamente recolhe, mensalmente, aos cofres da Previdência e o
que o servidor público, titular de cargo efetivo, recolhe à
alíquota de 11%, incidindo sobre o total da remuneração, sem a
limitação do teto de contribuição a que se sujeita o primeiro.
Quem paga sobre uma parcela da remuneração, não pode,
evidentemente, pretender a aposentadoria pelo valor total. Apesar
de lógico e matemático, esse raciocínio não é levado em conta
quando se comparam os dois regimes jurídicos.
Se
o trabalhador da iniciativa privada fizesse uma aplicação
financeira mensal da diferença de dinheiro, resultante do teto de
contribuição social, ao longo de trinta e cinco anos, terá
acumulado um capital capaz de render mais que a aposentadoria
integral do servidor público. Totalmente injusta e inadmissível,
comparações entre dois regimes, sem levar em conta todos os ônus e
os benefícios de um e de outro regime jurídico previdenciário.
DAS CAUSAS DE INSOLVÊNCIA DA PREVIDÊNCIA
SOCIAL
Costuma-se
dizer que a Previdência privada está quebrada. Só que ninguém diz
porque. Ora, das três contribuições sociais, previstas no art.
195, I da CF, cujas receitas deveriam pertencer à autarquia
securitária (art. 165, § 5º, III da CF) apenas a contribuição
sobre a remuneração do trabalho vem sendo administrado pelo INSS.
As demais contribuições, arrecadadas pela Receita Federal, não
estão sendo repassadas ao INSS.
O
certo é que, se os recursos da Previdência continuarem sendo
utilizados em outros setores, ainda que prioritários, pouco
importa, não haverá regime algum no planeta, que assegure o
equilíbrio econômico-financeiro do órgão securitário, nem passando
a tributar os aposentados, pensionistas e seus herdeiros.
Outrossim,
é preciso muita vontade política para implementar um plano de ação
de combate sistemático aos atos de improbidade, de fraude e de
corrupção, que estão minando os recursos da Previdência. Não
bastam ações esporádicas com vistas à mídia. É preciso combater
dia e noite. Missão árdua e estafante, mas necessária.
No
que tange à previdência pública, o que se ouve, diuturnamente, ao
longo das décadas, é que não há recursos para pagar um contingente
tão grande de inativos. Ao invés de lamúrias, tivessem os
governantes anteriores feito a Reforma há vinte anos, bastariam
mais quinze anos para implantar por completo o novo regime. O mal
é que todo governante quer fazer a Reforma hoje, para colher os
frutos no dia seguinte, o que, só seria possível atropelando os
direitos adquiridos. Ninguém tem a sensibilidade política de um
estadista para plantar, a fim de que gerações futuras e
governantes futuros possam colher os frutos. Por isso, não se
interessam em levantar as causas do desequilíbrio financeiro e
atuarial.
Ora,
prescreve o art. 40 da CF:
Aos servidores titulares de cargos
efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado
regime previdenciário de caráter contributivo, observados
critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o
disposto neste artigo.
Pergunta-se,
onde o cumprimento desse preceito constitucional em nível
nacional? Milhares de Municípios deixaram de instituir o regime
jurídico de caráter contributivo, a começar pelo maior Município
da Federação, o Município de São Paulo. Outra coisa, o regime
público é só para servidores titulares de cargos efetivos.
Os exercentes de cargos em comissão, bem como de outro cargo
temporário ou de emprego público sujeitam-se ao regime da
previdência geral. (§ 13 do art. 40 da CF). Mas, na prática não é
assim, como veremos mais adiante.
Quanto
a queixa de que há um enorme contingente de aposentados, o que é
verdade, não se pode esquecer, que esse fato deriva diretamente do
inchaço do funcionalismo. Os que criticam o inchaço do
funcionalismo público, por sua vez, esquecem-se de que são os
próprios agentes políticos que o vem patrocinando, conferindo,
periodicamente, estabilidade àqueles que ingressaram no serviço
público pela porta dos fundos, abalando a estrutura do
funcionalismo, consequentemente afetando a eficiência do serviço
público. E ao depois, ironicamente, flexibilizam a estabilidade,
permitindo a demissão, até mesmo, de servidores concursados (§ 4º
do art. 169 da CF na redação dada pela EC nº 19/98). É preciso que
se faça uma retrospecção para bem compreender a evolução do nosso
funcionalismo.
Até
os primeiros anos da década de sessenta tínhamos uma burocracia
estável, ágil, eficiente e enxuta, conduzida pelo DASP,
Departamento de Administração do Serviço Público, dirigido por um
competente Diretor, um profissional do ramo, que conhecia o
funcionalismo como a palma de sua mão. Essa burocracia era de
despertar invejas na Administração Pública dos Países
circunvizinhos. Seus integrantes recebiam apoio material,
financeiro e profissional para o cumprimento de suas árduas e
relevantes missões. Faziam cursos de reciclagem e se submetiam a
avaliações regulares para galgar os altos postos da hierarquia
funcional. Enfim, eram estimulados pelo poder público e
alimentavam esperanças de ascensão aos cargos e funções cada vez
mais complexos e relevantes.
Com
o advento do Regime Militar, essa burocracia sofreu o seu primeiro
grande golpe, representado pela invasão de ocupantes de ´cargos
de confiança´, recrutados por critérios puramente políticos,
para preencherem os escalões mais elevados do funcionalismo
público. Os concursados tiveram reduzido o seu campo de progressão
nas respectivas carreiras, além de serem subordinados, da noite
para o dia, a pessoas que levariam meses só para conhecerem a
máquina administrativa. Não é preciso ser inteligente para
descobrir o efeito danoso que isso causa no serviço público. A
cada mudança de governo acarreta uma espécie de paralisia
temporária na Administração Pública, contrariando o
princípio da continuidade, porque o funcionário público de
carreira, alijado dos postos de maior relevância, não consegue
fazer a ponte entre a nova e a anterior Administração.
Esse
quadro foi-se agravando, até que o nepotismo ganhou corpo no
funcionalismo. Lembro-me de um deputado que, na década de setenta,
conduziu a sua genitora adoentada, em uma cadeira de rodas, até
uma repartição pública para tomar posse em um importante ´cargo
de confiança´. Indagado pelos jornalistas, se a referida
senhora reunia condições para assessorá-lo, o ilustre
representante do povo assim respondeu: quem melhor do que a
senhora minha mãe, que me criou e me educou, para merecer a
minha confiança? Muito provavelmente, deve ter sido a primeira
e a última vez que a aquela servidora pública compareceu ao local
de trabalho. Contudo, é possível, também, que ela tenha sido
efetivada no cargo.
Com
o passar do tempo, os ´funcionários de confiança´ foram
sendo efetivados, ganhando a estabilidade. Porém, logo vinha nova
leva de fieis escudeiros que, por sua vez, também, seriam
efetivados, por ação dos agentes políticos. Quanto mais se
efetivava, mais e mais ´funcionários de confiança´ eram
recrutados. Enfim, era e continua sendo um dos grandes males da
rotatividade do poder político. Por conta desse fenômeno, o termo
funcionário público ficou reduzido a mera espécie do gênero
servidor público (uma mistura generalizada de profissionais
concursados e não concursados, de nomeados e contratados, de
servidores de Estado e servidores de agentes políticos). Mistura
generalizada, como se sabe, sempre produz efeitos indesejáveis,
dentre os quais a perda de identidade. Quando se mistura
uma maçã podre então, aí o efeito será bem pior. Refletindo a
irreversibilidade desse hábito de mesclar, arraigado nas diversas
Administrações Públicas, a Constituição de 1988 substituiu a
expressão funcionários públicos pelo termo servidores
públicos, conforme se depreende das secções II e III, do
capítulo VII, do título III.
Já
no decorrer do regime civil, o eficiente DASP foi extinto, dando
lugar ao Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado
(MARE) que, dada a sua estrutura avantajada, perdeu em agilidade e
eficiência em relação ao órgão sucedido, sem contar a natural
temporariedade de seu dirigente, que ganhou o status de
Ministro, fato que, por si só, conspira contra o funcionalismo,
por comprometer o desenvolvimento de programas de longa duração.
Com constantes mudanças na cúpula desse Ministério não há
possibilidade de cultivar uma duradoura política de pessoal, que
pudesse resultar, a médio e longo prazos, na formação de uma
burocracia de alta qualificação profissional. Esse resultado não
pode ser alçado, obviamente, em poucos anos. E mais, quando essa
burocracia fica subordinada à autoridade que, por desconhecer as
peculiaridades do setor público, tenta impingir os hábitos e as
regras de uma grande corporação econômica, em nome da eficiência e
rapidez, tudo se complica. É o começo do fim. Seria o mesmo que
transplantar para o campo de Direito Público os princípios do
Direito Privado, o que, aliás, já está acontecendo com aplausos de
alguns juristas de renome. Eficiência e rapidez no serviço
público, certamente, hão de serem buscadas, porém, com total
respeito e subordinação aos preceitos de ordem pública, e dentro
dos rígidos princípios norteadores do regime de Direito Público.
Do contrário, vamos acabar confundindo, por exemplo, terceirização
no serviço público com a privatização que, para muitos, já seriam
a mesma coisa, para o grande espanto dos publicistas em geral.
Serviço público não pode ser confundido com atividade empresarial;
os seus fins são diversos e até antagônicos, assim como os
princípios que os regem.
Concluindo,
o inchaço da máquina administrativa e conseqüente situação
deficitária da previdência pública, em parte, resulta
diretamente do descumprimento do princípio
constitucional, que veda o ingresso no funcionalismo público
sem concurso de provas ou de provas e títulos, o qual, vem sendo
inscrito desde a Carta Política de 1934 até hoje (art. 170, § 2º
da CF/34; art. 156, b da CF/37; art. 186 da CF/46; art. 95,
§ 1º, da CF/67; art. 97, § 1º da Emenda 1/69 e art. 37, II, da
CF/88). Por que espezinhar esse princípio constitucional salutar,
introduzindo no seio da burocracia ordeira e profissionalizada
elementos estranhos, sem comprovação de preparo
técnico-profissional para ocupar os cargos mais relevantes do
Estado? Por que permitir que essas pessoas, com apenas dez anos de
serviço público (sendo somente cinco anos de contribuição sobre o
total dos vencimentos) se aposentem com proventos integrais?
Como
se vê, uma reforma dessa envergadura não pode ser iniciada a toque
de caixa. É preciso levantar e estudar os dados; analisar a
realidade; diagnosticar as causas de tantos males da Previdência,
com vistas à sua extirpação.
O
momento atual exige muito trabalho e dedicação, e não reformas
que, além de sem rumo, porque não partiu de diagnósticos corretos,
começa minando os pilares onde se assentam a Administração
Pública. E aqui é oportuno lembrar as palavras do saudoso jurista
Geraldo Ataliba:
"Só iremos fazer o bem para o Brasil no
momento em que pararmos com a mania de reformar, de mudar e
comerçarmos a trabalhar, a construir o País, para fazer o País
funcionar" (Anais do IX Congresso de Direito Tributário, in
Revista do Direito Tributário, vol. 62, p. 208).
Se
reformar for preciso, deve começar com a Reforma do Estado, e não,
com a Reforma da Previdência e Reforma Tributária como estão
pretendendo. É necessário que a Reforma do Estado resulte na
desburocratização, na agilização de seus órgãos e instituições e
na conquista da eficiência. E é imprescindível que se possa
avaliar o custo da atividade do Estado modernizado para, ao
depois, pensar nas suas fontes de custeio, preconizando a Reforma
Tributária adequada à sustentação da máquina estatal enxuta.
DA DISTINÇÃO DE SERVIDORES EXERCENTES DE FUNÇÕES
DE ESTADO
Mudar
é preciso, para aperfeiçoar o sistema previdenciário público de
caráter contributivo, eliminando, por exemplo, o privilégio de
aposentar-se com os vencimentos integrais do cargo, ao cabo de dez
anos de efetivo exercício, valendo-se da fórmula mágica da
contagem recíproca, que deveria valer apenas para o cômputo do
tempo para aposentadoria. Imagine-se o exemplo de alguém, que após
vinte cinco anos na iniciativa privada, ganhando dois salários
mínimos, tivesse sido guindado para importante cargo em comissão,
ganhando seis mil reais, e que tivesse sido efetivado no final do
primeiro quinquênio. Somente no início do segundo quinquênio é que
o aludido servidor passaria a contribuir sobre os seus vencimentos
integrais. Porém, ao final do segundo quinquênio, aquele servidor
felizardo poderia aposentar-se com os proventos integrais, ou
seja, com seis mil reais, contrapondo-se aos dois salários mínimos
do tempo da iniciativa privada. Isso não seria justo com os demais
servidores de carreira, nem com a sociedade. Situações da espécie
são insustentáveis ética e moralmente. Algo precisa ser feito e
com urgência.
Agora,
querer meter a todos no mesmo balaio, ignorando as peculiaridades
de cada categoria de servidores públicos, é pecar pelo
radicalismo. Existem servidores, que exercem funções típicas de
Estado, correspondentes a cargos públicos específicos, de carreira
ou isolados, que os diferenciam dos demais servidores e dos
trabalhadores em geral. São os magistrados, os membros do
Ministério Público, os Procuradores da Fazenda, os diplomatas, os
agentes de fiscalização, os militares etc. Se na ativa, exigem-se
qualificações específicas, que conduzem a vencimentos
diferenciados, não haveria coerência na pretensão de meter a todos
na mesma vala comum, quando aqueles servidores de Estado forem
para a inatividade. O que se pode e se deve ter, é um teto na
percepção dos proventos, porém, nunca igualar-se aos desiguais.
Impõe-se respeito ao regime previdenciário próprio. Isso é
elementar e justo; não é elitismo. Afinal, a escolha, por exemplo,
de juízes entre pintores, escultores, jardineiros, gravadores e
caixeiros, como aconteceu na formação da singular magistratura de
Paris, nos idos de 1790, não passa de uma reminiscência histórica,
difícil de ser repetida nos dias atuais.
CONCLUSÕES
Não
há necessidade de precipitar reformas radicais, mas é preciso
ajustar, com urgência, os dois regimes previdenciários, eliminando
tanto as causas que impedem o correto ingresso dos recursos
financeiros pagos pelos contribuintes, como também, para tapar os
ralos por onde escoam os gastos ilegais, desnecessários,
ilegítimos ou espúrios;
Se
o combate sistemático das causas, que conduziram o sistema
previdenciário à beira do abismo, não for suficiente, aí sim,
impõe-se a Reforma a partir de projeto, ampla e democraticamente
debatido por todos os segmentos da sociedade, porém, precedida da
Reforma do Estado.
Eventual
Reforma Previdenciária deverá obedecer aos princípios
constitucionais esculpidos na Carta Política de 1988.
Kiyoshi Harada é advogado em São Paulo (Capital), diretor da Escola Paulista de Advocacia, professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo, ex-procurador-chefe da Consultoria Jurídica da Prefeitura de São Paulo.