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Parentes são maiores agressores
de idosos no Brasil

Tatiana Fávaro

Adicionado ao site em 15.11.2003


Destaque na mídia, principalmente na televisão, a violência contra idosos é objeto de estudo da pesquisadora Guita Grin Debert, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, desde o início dos anos 90. O mais recente trabalho da professora de Antropologia é uma pesquisa na Delegacia de Polícia de Proteção ao Idoso da capital paulista. O levantamento de estatísticas e depoimentos ainda está em andamento, mas já mostra que, na maioria dos casos denunciados, quem agride esses homens e mulheres com mais de 60 anos são seus próprios filhos ou parentes próximos, que podem ou não morar na mesma residência.

A maior parte das queixas examinadas pela pesquisadora – aquelas registradas entre janeiro de 1999 e julho de 2000 – foi feita por pessoas com idades entre 65 e 74 anos, havendo um certo equilíbrio entre o número de denúncias feitas por homens e mulheres.

Outro dado destacado pela pesquisadora é o aumento da procura de ajuda pelas vítimas. “Cerca de 85% das denúncias partem dos próprios idosos”, diz Guita. As demais queixas costumam ser de vizinhos ou parentes distantes. “O fato de ter aumentado a freqüência e número de registros de agressões em instituições como a delegacia e também o Ministério Público indica que o idoso está mais seguro de que pode procurar auxílio e de que terá onde fazê-lo, se precisar”, diz a professora.

Autora do livro “A Reinvenção da Velhice” (Edusp, 1999), que ganhou em 2000 o Prêmio Jabuti na área de Ciências Humanas e Educação, Guita classifica agressão, em seu trabalho, qualquer tipo de violência contra o idoso. “Bater, deixar de atender, não parar o ônibus e atitudes desse tipo são agressões na esfera pública. Os maus tratos em clínicas e asilos, uma das formas mais dramáticas de violência contra o idoso, são consideradas agressões na esfera semi-pública. E a violência doméstica, incluindo ameaças e injúrias, são consideradas privadas”, classifica. Segundo ela, o tipo de violência mais denunciado é aquele praticado dentro das residências.

“Infelizmente, o que vemos é que o agente que mais recebe esse tipo de denúncia não é nem a Delegacia Especial de Proteção ao Idoso, nem a Justiça propriamente dita, por meio dos Juizados Especiais Criminais ou Ministério Público, mas sim a mídia”, comenta. “É inegável que ela tem seu papel social, mas é lastimável que ela seja a principal referência na busca do idoso pela informação, pois ali, naquele espaço, seja na novela ou nos programas de auditório, existe a crítica, mas não a explicação detalhada dos direitos.”

Financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Fundação Ford, a pesquisa na Delegacia do Idoso de São Paulo começou oficialmente em 2000. Mas é fruto de um trabalho maior, que Guita iniciou em 1990. Professora desde 1984 na Unicamp, ela orientou o trabalho de duas alunas do curso de Ciências Sociais sobre assistência a idosos em Campinas. “Elas é que descobriram que seriam criadas as Delegacias Especiais de Proteção ao Idoso no Estado em 1991 e me trouxeram essa informação”, lembra. A partir de então, Guita se aprofundou no assunto e foi descobrir que tipo de queixa essas pessoas faziam, quem eram seus agressores, como eram classificados esses delitos pelo código penal, quais as penas para essas atitudes e tantas outras dúvidas que, ao longo do caminho, foram aparecendo.

Durante esse percurso, em 1995, foi sancionada a Lei 9.099, que criou os Juizados Especiais Criminais e as penas alternativas, na tentativa de promover a rápida e efetiva atuação do Direito, simplificar e acelerar os processos emperrados nas prateleiras do Judiciário brasileiro. Ela trataria de contravenções e crimes considerados de menor poder ofensivo, cuja pena máxima não ultrapassaria um ano de reclusão. “Na verdade, o objetivo principal foi desvirtuado, pois esses juizados acabaram atendendo um público maior do que o esperado porque, entre os denunciantes, havia uma parcela da sociedade adormecida, em silêncio, esperando uma oportunidade de se manifestar contra a violência doméstica”, avalia a pesquisadora.

Nesses juizados, os princípios da informalidade e da economia processual dispensavam, e dispensam hoje, em muitos casos, a realização do inquérito policial. “O Boletim de Ocorrência é substituído pela elaboração de um Termo Circunstanciado, que traz um relato dos fatos e a caracterização das partes. O primeiro segue para o tribunal comum. O segundo, pode ser encaminhado com presteza ao juizado especial”, completa Guita.

O efeito dessa lei e da nova institucionalidade sobre as Delegacias Especiais de Polícia (não só de Proteção ao Idoso, mas também as da Mulher) foi bom, segundo a professora, porém, tem lá suas falhas. “A maioria dos casos atendidos é de crimes de menor poder ofensivo, como as lesões corporais e ameaças e, como tal, eles passam a ser objeto de atendimento dos novos juizados”, afirma. “Antes, havia uma crítica de que as denúncias não chegavam à Justiça. Agora elas chegam, mas criam-se outros ‘buracos’ entre os idosos e o Poder Judiciário, entre a mulher e o Poder Judiciário. As delegacias, que tinham o papel de serem mais duras na condução desses casos e, portanto, acabavam sendo menos impessoais, estão dividindo sua demanda e os juizados ficam sobrecarregados.”

Durante todo o ano de 1999, foram registrados 63 Termos Circunstanciados na Delegacia do Idoso de São Paulo. Em 2000, somente de janeiro a julho, foram registrados 53 desses termos. A maioria dos casos avaliados até agora pela pesquisa, isto é, de 23% a 33% das queixas, dependendo do período, refere-se a algum tipo de lesão corporal (dolosa ou culposa). As ameaças e injúrias ocupam o segundo lugar (de 10% a 15% dos casos), também conforme o período analisado. Segundo Guita, registradas como Termos Circunstanciados, essas ocorrências podem ser rapidamente encaminhadas à Justiça e as partes devem ser chamadas a comparecer a uma audiência. “Os juizados especiais não só transformaram a dinâmica das delegacias e o modo como elas conduzem os delitos, como afetaram suas próprias demandas. Criados para, na prática, assumirem uma parcela dos processos criminais das varas comuns, esses órgãos passam a dar conta de um outro tipo de delito, que não chegava às varas judiciais.”

Assistentes sociais - Para a pesquisadora, instituições como as Delegacias Especiais de Polícia e os Grupos Especiais do Ministério Público, criados para exercerem um papel de defensores da sociedade (dos idosos, das mulheres etc.), transformaram a violência doméstica, uma questão inicialmente individual e social, em domínio público. Muito bom, porque a sociedade passa a tolerar muito menos esse tipo de atitude. Mas ruim, por estar atrelado a conseqüências como a descaracterização dos papéis de cada um desses organismos. Uma das maiores queixas nas Delegacias Especiais de Polícia, por exemplo, não vem de fora da unidade. Está ali dentro, onde as atividades acabam sendo consideradas, principalmente por seus funcionários, um trabalho mais voltado à assistência social do que à prática policial.

O problema, segundo a pesquisadora, é que falta muitas vezes infra-estrutura básica para o exercício das funções policiais. “Já teve delegado da Mulher da capital que reclamou para mim da falta de lápis e papel”, exemplifica. Outro conflito apontado na pesquisa é que, com a invasão do Direito na organização da vida social ficam prejudicadas as relações privadas. “O que tem ocorrido é a judicialização das relações sociais”, afirma Guita. “Porque o Direito não se limita à esfera propriamente política, mas tem regulado a sociabilidade e as práticas sociais, como decidir as punições pelo tipo de tratamento dado às crianças pelos pais ou aos pais pelos filhos adultos.”

O trabalho de Guita ao longo dos últimos anos já tocou nesse ponto e mostra que alguns analistas, como Werneck Vianna em seu livro “A Judicialização da Política e das Relações Sociais no Brasil” (Ed. Renavan), consideram essa expansão do Direito e de suas instituições “ameaçadora à cidadania e dissolvente da cultura cívica, à medida que tende a substituir o ideal de democracia por um ordenamento de juristas”. “As Delegacias Especiais de Polícia foram criadas com o objetivo de politizar a Justiça. Os juizados especiais não podem se limitar a judicializar as relações familiares dos cidadãos pensados como falhos”, diz a pesquisadora.

Um dos motivos de o Ministério Público e o Poder Judiciário ser cada vez mais procurado para resolver os problemas familiares é, segundo Guita, uma “regressão” no trabalho das Delegacias Especiais de Polícia. “Depois da criação da primeira Delegacia de Proteção ao Idosos, em 1991, por meio do Fundo Social de Solidariedade do Estado de São Paulo, outras dez unidades foram instaladas entre capital, ABC e interior”, lembra a pesquisadora. “Depois, no governo Covas, um decreto determinou a extinção de quase todas elas, restando apenas as unidades da capital e de Osasco”, comenta. Tratava-se do Decreto 40.215, de julho de 1995, que fechava as delegacias “devido a uma reorganização do Departamento de Polícia Judiciaária do Estado de São Paulo”.

Nos dois primeiros anos de funcionamento da Delegacia do Idoso da capital paulista, foram atendidas mais de 13.500 pessoas, das quais 9.525 foram tirar cédulas de identidade, 3.350 pediram informações, 515 registraram Boletins de Ocorrência e 270 estavam à procura de documentos perdidos ou furtados. “Foram instaurados 123 inquéritos”, recorda Guita. A unidade funcionava num local de fácil acesso, a Estação de Metrô Barra Funda, onde ficou até 1998.

“Naquele ano, foi transferida para a Rua Bitencourt Rodrigues, atrás do Pátio do Colégio, no Centro de São Paulo. Para chegar à delegacia, as pessoas com mais de 60 anos tinham que descer uma ladeira e alguns lances de escada, pois a unidade ficava no subsolo da Delegacia da Mulher ali instalada. O pior era, depois, fazer o caminho inverso”, salienta a pesquisadora.

A delegacia ficou ali até o ano passado. No começo deste ano, foi para a Praça da República e, apesar de ainda não terem sido compilados dados estatísticos sobre os reflexos da mudança de endereço, tanto a pesquisadora quanto sua assistente e os funcionários consultados para o trabalho acreditam que a transferência da unidade foi de grande valia, pois a freqüência e as denúncias de casos de violência contra idosos devem crescer.



 Tatiana Fávaro é jornalista e escreveu sobre este assunto para a Unicamp.




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